MEMORIAL DE UM SUJEITO DE MALÍCIA / Jaime Collier Coeli

O autor preparou-se para enfrentar a pandemia em total isolamento: separou muitas dúzias de ovos, uma frigideira pronta para ser esquentada e untada com manteiga. Também arrumou vareta de bambu para mexer o mexido. Marcado o dia “D”, trancou as portas e então percebeu que seu aparelhamento de cozinha limitava-se ao telefone. Durante mais de ano gastou a maior parte do tempo encomendando pratos feitos e exibindo o cartão bancário pelas frinchas da porta. O tempo restante correu tentando ordenar a coleção de anotações sobre os mais diversos assuntos que, em oitenta e três anos de vida, derramou sobre arremedo de escrivaninha. Por fim, concluiu que passara oito décadas apurando o alcance da máxima manda quem pode e obedece quem tiver juízo. Felizmente, alcançado esse ponto, a pandemia começa a receber doses de vacina, completa-se a ordenação das anotações e o mundo, mais uma vez!, exibe robustez de combatente heroico contra os males da civilização, enfim! salva. Resta, agora, decidir como e quando retornar ao club de entretenimento civilizatório, observados os protocolos fixados pelas práticas consuetudinárias. O que se deve dizer na sociedade para ser taxado de cidadão conveniente e amável mas não tachado de desabusado, para quem todas as crenças são iguais, todas as negações, todas as atitudes. A opção mais popular consiste em saborear pratalhazes de ambrosia, à maneira de Miconos, ainda que o cidadão só tenha direito a ingresso no piscinão de Ramos, que outrora, mais extenso, atendia por Maria Angu, vetusta praia do palácio de São Cristóvão, atual museu incinerado. Outra escolha, mantido o gótico, resume-se aos vagabondi, no latim da Idade Média a poesia musicada por Carl Orff:

O fortuna/ Velut luna/ Statu variabilis/ Semper crescis/ Aut decrescis/ Vita detestabilis/ Nunc obdurat/ Et tunc curat/ Ludo mentis aciem, / Egestaten, / Potentaten/ Dissolvit ut graciem.

Ó sorte/ És como a lua/ Mutável/ Sempre aumentas/ Ou diminuis/ A detestável vida/ Ora oprime/ E ora cura/ Para brincar com a mente, / Miséria, / Poder/ Ela os dissolve como gelo.

Jaime Collier Coeli - Nasceu em 1938 em Campinas (SP). Exerceu o jornalismo em São Paulo, Brasília, Goiânia e Rio de Janeiro.  Publicou: Blindagem de miosótis (contos, 1977); Ei, amor, você também ama a realidade, não ama? (romance, 1983); Síndrome do Anil (romance, 1999); Filosofia sem medo (ensaio, 2000); A saga de Nimuendaju (rapsódia, 2005); Banal-idade (contos, 2014); Ignora(bi)mus (contos, 2017); Areeiro & grãos (poemas, 2019); Rumo da terra sem males (folhetim palimpsesto, 2020).

Serviço:

Memorial de Um Sujeito de Malícia
Jaime Collier Coeli

Scortecci Editora
Contos
ISBN 978-65-5529-541-2
Formato 14 x 21 cm
48 páginas
1ª edição - 2021

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